domingo, 29 de julho de 2007

Ministério da Justiça de Portugal leva lei ao Second Life

Clamando que no mundo virtual de Second Life o número de avatares residentes já ultrapassa os oito milhões, o Estado português decidiu avançar com a criação de um centro para resolução de litígios. Somos os primeiros, afirma o Ministério da Justiça.


A inauguração oficial do novo bastião da justiça portuguesa sucedeu sexta-feira, na Sala do Senado da Universidade de Aveiro, com o Secretário de Estado da Justiça, João Tiago Silveira, a apresentar na vida real o projecto do e-Justice Centre – Centro de Mediação e Arbitragem, construído para servir a comunidade de Second Life. A inauguração foi transmitida por vídeo para SL, o mundo que a partir de agora pode contar com a justiça portuguesa para acelerar a resolução de processos.

O edifício que alberga a nova estrutura virtual da justiça portuguesa assemelha-se a uma Torre de Belém de ar futurista, erguendo-se na ilha da Universidade de Aveiro, cujo Departamento de Comunicação e Arte se associou ao projecto em conjunto com a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

Na entrada o visitante depara com duas placas, uma com a indicação e-Justice Centre e a outra com um “Ministério da Justiça – Justiça com iniciativa” que dão o mote para os serviços que a construção alberga. Ali funcionará, a partir da próxima segunda-feira (e das 15 às 18 horas de 2ª a 6ª), o e-Justice Centre, que disponibiliza “serviços de mediação e arbitragem a todos os avatares (os habitantes) do Second Life, para resolução de litígios resultantes de relações de consumo ou quaisquer outras assentes em contrato celebrado entre partes”.

Virtual aplicado ao real

No interior do edifício está alojado o centro de mediação e arbitragem e todas as infra-estruturas necessárias ao seu funcionamento. Além de um museu-galeria por ora vazio, o edifício dispõe de dois auditórios, que permitem a realização de conferências e a simulação de sessões de julgamento e arbitragem, a assegurar pelo Laboratório de Resolução Alternativa de Litígios da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

Com esta iniciativa, lê-se em comunicado: "o Ministério da Justiça visa divulgar os meios de resolução alternativa de litígios como forma célere e informal, através de um canal acessível à escala planetária como é o Second Life, assinalando a aposta do Estado Português e da Presidência da União Europeia em meios alternativos de resolução de litígios como a arbitragem e a mediação."

Segundo os responsáveis do Ministério da Justiça trata-se de “uma experiência que permite a utilização de métodos de resolução de litígios de forma inteiramente informal e virtual, a qual poderá vir a ter futuras aplicações em litígios reais”. Portugal é, assim, salienta o Secretário de Estado da Justiça “o primeiro Estado a disponibilizar um meio de resolução de litígios no Second Life”, referindo que esse passo se justifica porque “só no mundo virtual Second Life o número de avatares residentes já ultrapassa os oito milhões, constituindo, por isso, um universo de utilizadores suficiente para justificar a criação de um centro para a resolução de litígios”.

Tribunal em 2005

Esta afirmação oficial já causou mal-estar entre os magistrados portugueses, que reclamam que primeiro se resolvam os litígios da vida real antes de o Estado português se debruçar sobre os problemas da vida virtual. De facto, é licíto perguntar – e o cidadão comum já o começou a fazer – qual é o interesse efectivo de um “tribunal” para julgar questões do mundo virtual?

Não parece existir uma resposta efectiva para esta escolha, a não ser uma vontade de “chegar-se primeiro”. O que até nem é efectivamente verdade, porque a vontade de inclusão de leis em Second Life existe desde que o mundo virtual foi implementado. E de facto as leis existem, pelo menos as essenciais para o funcionamento daquele, é bom não esquecermos, programa informático.

E já em Setembro de 2005 dois estudantes de Direito apresentavam o SLSC – Second Life Superior Court, cujo modelo é muito semelhante ao agora lançado para o e-Justice Centre. Segundo os mentores do SLSC, os avatares Judge Churchill e Judge Mason, as decisões do “tribunal” seriam suportadas pela interpretação das regras comunitárias de Second Life e pela Declaração de Independência dos Avatares. Para Mason e Churchill, o ciberespaço é “uma entidade independente do mundo real, pelo que se deve olhar para a sua legislação somente como guia”.

Esta experiência pioneira em Second Life – e como tantas outras coisas naquele mundo, transitória – deixou os seus frutos, pelo que em 2006 a Harvard Law School decidiu dar aulas em Second Life durante todo um semestre, criando um “tribunal” virtual onde os alunos podiam treinar. É um modelo que parece poder aplicar-se àquilo que o Laboratório de Resolução Alternativa de Litígios da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa vai fazer no e-Justice Centre português.

Alunos ensaiando “laboratorialmente” soluções. Até porque, afinal, os litigantes podem sempre não aceitar a resolução proposta pelos “juízes”, possibilidade que está prevista no próprio regulamento e que foi confirmada ao Expresso no “palácio da justiça portuguesa em SL” por membros do e-Justice.

Cama dá processo

O universo criado pela Linden Lab tem, afinal, um código de conduta próprio que serviu até agora as necessidades dos habitantes. É natural que com a entrada de empresas em Second Life comecem a surgir disputas que podem exigir alguma forma de mediação. E o facto de os criadores terem direitos sobre as suas obras introduziu também a necessidade de protecção desses mesmos direitos, algo que, afinal, sempre que julgado necessário, tem sido resolvido no mundo real.

O primeiro caso de SL levado a tribunal teve origem numa disputa em torno da autoria de... uma cama para fazer sexo. A empresa Eros, do ex-canalizador Kevin Alderman, moveu uma acção contra o avatar Volkov Catteneo, por ter copiado e vendido, a baixo preço, réplicas de um dos objectos de mais sucesso desenvolvidos pela Eros: uma cama com várias animações de posições sexuais...

Problemas de abuso do direito de autor (com produtos... mais convencionais, mesmo que virtuais) tem sido, aliás, um dos aspectos mais recorrentes do “crime” em Second Life, representando a mais evidente disputa que pode existir entre habitantes. De facto, será difícil falar de outra coisa num mundo onde nem sequer se pode dar um estalo em alguém que nos é incómodo.

Existem, claro, encenações virtuais de crimes, de violência, de sexo, nas suas mais variadas formas, mas tudo isso não parece susceptível de passar pelo e-Justice Centre agora à espera de utilizadores. Será que as empresas eventualmente lesadas em Second Life vão recorrer aos tribunais da vida real, nos seus países de origem, ou recorrer à justiça portuguesa do e-Justice?

Impostos já a seguir

A experiência sugere que usarão os tribunais do mundo real. E a legislação do país onde a disputa tem lugar. Afinal, Second Life rege-se primeiro pela própria lei americana e depois pelo direito internacional. Quando em Maio de 2006 um habitante de SL viu a sua conta fechada pela Linden Lab moveu-lhes uma acção em tribunal exigindo a devolução da sua terra virtual e bens. Num tribunal do mundo real.

Mas este mundo pode morrer sob o peso de muita legislação. Quem o sugere é Patti Waldmeir num artigo no Financial Times, em Abril deste ano, ao afirmar que “muita lei vai arruinar Second Life”, recordando que a vantagem de um mundo da imaginação é que vive isento das leis da Natureza e do Homem, livre da gravidade, da acumulação de calorias e das limitações impostas pela identidade. A jornalista afirma ainda que, agora que o dinheiro e advogados entraram no último bastião da imaginação, tudo pode mudar. Para pior.

A chegada dos tribunais é, provavelmente, um sinal de que todos os males do mundo estão a caminho de algo que começou por ser um universo para escapar do quotidiano, mas cada vez mais se parece com a vida real. A IBM e a Intel já traçaram as regras para os seus funcionários em SL, o FBI pretende fechar os casinos e os governos norte-americano e britânico estudam forma de lançar impostos sobre bens virtuais transaccionaods em Second Life. Não seria de admirar que Portugal, que agora se colocou na linha da frente no que respeita à justiça, queira também ser o primeiro quando se tratar de nos lançar os fiscais do IRS à perna, procurando saber quem tem propriedades na Segunda Vida. Já estivémos mais longe.

Por José Antunes
Fonte: Expresso.

Nenhum comentário: