Enquanto a jogatina é banida, a religião invade e marca território no Second Life
No mesmo mês em que os cassinos são banidos de Second Life, a igreja católica sugere que os 'Soldados de Cristo' podem estar a caminho dos mundos virtuais. Afinal de contas, as outras fés já estão por lá.
A Linden Lab determinou, após investigações do FBI e de acordo com uma série de normas americanas, o encerramento dos casinos de jogo existentes em Second Life, o mundo virtual que concebeu e gere. Foi uma espécie de “apagão” no cenário daquele universo. Uma série de simuladores fechados, representados por manchas escuras no mapa inscrito no programa, sugeriam a dimensão da lavagem. Para alguns habitantes e visitantes, é um sinal a mais dos tempos e da realidade insinuando-se no quotidiano de algo que começou por ser uma utopia de sonhadores.
Foi em Julho que a Intel e a IBM determinaram as regras de comportamento dos seus funcionários em Second Life, foi em Julho que o Ministério da Justiça português decidiu abrir “tribunais” para servir a comunidade virtual de oito milhões (de inscrições a mais do que habitantes, é bom salientar...). Nesse mesmo mês a polícia canadense começou a procurar futuros candidatos especialistas em Second Life. A HP e a Microsoft sugeriram que os próximos trabalhadores podem ser recrutados ali. De repente, SL parece RL (Second Life parece a Real Life, a vida real, que temos do lado de cá do tela do computador).
É neste ambiente de alguma preocupação que a Igreja Apostólica Romana sugere que é chegada a hora de olhar para os mundos virtuais como um novo passo na caminhada de evangelização. Afinal, uma igreja que já tem uma webcam debruçada, permamentemente, sobre o túmulo do Papa João Paulo II, não pode menospreza a capacidade de comunicação de um meio como a Internet. Contrapondo-se assim ao “apagão” da queda dos casinos, surge no horizonte um sinal da luz religiosa. Pronta a iluminar Second Life. Roma está a caminho.
Nova peregrinação
A notícia disso mesmo surgiu na revista La Civittà Cattolica, publicação jesuíta aprovada pelo Vaticano, onde o padre Antonio Spadaro escreve que é chegada a hora dos católicos levarem a palavra de Deus às almas que habitam Second Life. Aquele religioso afirma que quem palmilhou as florestas de África e foi aos confins da China pode muito bem aventurar-se em SL. A frase devolve-nos imagens das peregrinações, com frades arrastando-se por trilhos perigosos em busca de tribos perdidas a quem falar no Senhor... mas Second Life é um universo distinto, onde as pessoas conhecem, da vida real, a religião. Ou a religião católica. Mesmo que não a pratiquem.
Para Antonio Spadero, a liberdade com qual se vive no Second Life transformou aquele mundo num antro de jogo, prostituição e adultério, um fenômeno que não pode ser esquecido, pelo que há que penetrar nessa “selva” para se entender, perceber-lhe as potencialidades e os perigos.
É nesse contexto que a igreja católica considera o Second Life como um território de missão, um espaço digital onde existe a oportunidade de encontrar pessoas que partiram para ali, em busca de refúgio e realização do que não encontram no mundo real. Por isso mesmo os membros da Companhia de Jesus, jesuítas que outrora tanto palmilharam levando a fé, vão marchar para o Second Life, cumprindo pela primeira vez no mundo virtual a missão que em 1534 levou Inácio de Loyola, com vários colegas, a pedir autorização para a criarem a ordem religiosa.
Mosteiro cisterciense
Quando chegarem, o panorama que vão encontrar será bem diferente das missões anteriores. Basta fazer uma pesquisa no mecanismo de busca de Second Life para encontrar 404 referências à palavra “igreja”, (church no original), 154 ao termo religião, 310 ao termos cristão, 43 a muçulmanos, 9 a islâmico, 94 à palavra judaísmo... e muitas outras referências religiosas. Claro que olhando mais de perto, se descobre, como em qualquer mecanismo de busca, que muitas pistas não tem relação com o tema (igrejas de Elvis ou da masturbação), mas quando se encontram links para uma visita a um Santuário de Nossa Senhora de Lourdes no Second Life, à Senhora do Rosário ou de Guadalupe, além de mesquitas, sinagogas e outros locais de reunião, os sinais evidentes de uma preocupação religiosa confirmam que, na passagem para um mundo virtual, o homem levou a fé consigo.
Existem mosteiros completos no Second Life, como o conjunto cisterciense erguido por François Jacques (um professor de meditação e oração numa universidade religiosa do mundo real), e que pretende reproduzir, com alguma liberdade, a Abadia de Fontenay existente perto de Dijon, na costa oeste francesa. Erguido por Bernardo de Claraval, o fundador da Ordem de Cister, o mosteiro foi erguido para, além de ser um local de visita, reunir um grupo de monges cuja sua oração seja dada um contribuição para que a paz reine em Second Life, e no mundo real.
Cristãos, judeus, muçulmanos e outros
Esta preocupação religiosa num mundo virtual não é nova. Desde 2004 que se assiste o crescente surgimento de novos grupos e reprodução de aspectos destas comunidades na vida real. E não é algo que esteja restringido à fé cristã. Do muçulmano, que sentado diante do computador coloca o seu avatar em posição de oração numa mesquita virtual em SL, e acredita que isso tem o mesmo valor de uma visita real à mesquita, à artista plástica judia que criou a primeira sinagoga virtual – Temple Beit Israel - e de repente tinha uma comunidade de 200 membros. A fé no Second Life pode tomar as formas mais estranhas, contudo existe.
Os responsáveis das principais comunidades – Cristãos, Judeus e Muçulmanos -, sugerem que milhares de praticantes regulares surgem nos templos nos dias e horas de celebração. Mas existem ainda outros grupos religiosos paralelos - que reúnem um número indeterminado de participantes.
Se muitos locais religiosos de Second Life são uma reprodução arquitetônica do mundo real, estendendo essa colagem até à reprodução das práticas litúrgicas, outros existem graças ao uso potencialmente forte da tecnologia, para alcançar os 'inalcançáveis'. Um exemplo dessa forma de oferecer religião é revelado pela LifeChurch.TV.
A televisão da igreja
O edifício se parece com um shopping center ou complexo de cinemas, com diversas salas e um grande auditório (foto). Desde que se chega às imediações do recinto, o residente é bombardeado com sugestões de filmes religiosos para ver. Uma estação de rádio passa música protestante 24 horas por dia.
Na entrada do auditório, os avatares são convidados a obter um HUD (Head-Up Display), uma interface gráfica que podem usar durante a missa e que lhes permite colocarem-se em posição de orar, erguer os braços ao céu e representar outros movimentos típicos de qualquer celebração religiosa. Realiza-se assim o milagre do espírito comunitário que as igrejas sugerem ser necessário para que haja religião no mundo virtual.
A LifeChurch.TV dispõe grandes telas de vídeo onde é possível rever sermões anteriores, além de áreas especiais dedicadas à confissão e ao combate à pornografia. É verdade, as pessoas podem confessar-se virtualmente. E depois ler o que as outras escreveram sobre os seus pecados. É algo estranho segundo as doutrinas que conhecemos, mas que aqui funciona: as pessoas acabam por revelar os seus problemas mais facilmente pois estão escondidas atrás de um avatar. A leitura e os comentários que seus colegas podem fazer acabam por funcionar como que uma extensão da rede de amigos. É estranho mas acaba fazendo sentido.
Este “complexo religioso” em que foram investidos milhares de dólares, não é exclusivo no Second Life. De fato, a LifeChurch.TV, com base em Oklahoma, existe no mundo real e distribui sua mensagem para os fiéis em onze locais distintos do mundo real e para a comunidade do Second Life. Assistir a um desses sermões não é muito diferente de seguir a missa de domingo através da TV. Afinal, é uma forma de comunhão que permite a quem não pode estar presente fisicamente, continuar fazendo aquilo que a palavra religião sugere: “reconectar-se” a um mundo de que, por uma ou outra razão, se está afastado.
Com um cenário assim, quando os Soldados de Cristo que a Companhia de Jesus representa, chegarem a Second Life, terão de 'entrar na fila'. Porque a fé no metaverso já está lá a algum tempo, e distribuída por diversas ações. A Igreja Católica é só mais uma. E chega atrasada.
Por José Antunes
Fonte: Expresso.
domingo, 5 de agosto de 2007
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